sexta-feira, 3 de maio de 2013

TEXTO VENCENDO NA RAÇA - 1ª parte



Vencendo na raça

Pesquisas revelam que o racismo sempre esteve associado à dominação de um povo sobre outro, mas as diferenças entre as raças vão pouco além das que se vê na imagem.

Poucas coisas mudaram no mundo nos últimos 100 mil anos. Naquela época, os primeiros seres humanos modernos surgiam na África e começavam a se espalhar por outros continentes. Eles eram praticamente idênticos aos mais de 6 bilhões de pessoas que habitam hoje o planeta. De lá para cá, os únicos retoques que a nossa espécie sofreu foram pequenas adaptações aos diferentes ambientes mudanças exteriores para lidar melhor com lugares mais frios, secos ou com ventos mais fortes. O lado triste dessa incrível capacidade de adaptação é que as diferenças físicas foram usadas para avaliar pessoas à primeira vista e atribuir-lhes qualidades e defeitos. Milhões foram escravizados, mortos ou discriminados por causa da aparência física.

Por que só agora os cientistas começam a entender as diferenças entre os seres humanos? Tanta demora para tratar do assunto tem um motivo: as primeiras tentativas científicas de analisar as raças humanas levaram quase sempre à conclusão de que algumas eram mais inteligentes e criativas ou seja, superiores às outras. O resultado foram as tentativas de criar uma raça pura e as ideologias que levaram a genocídios. As tragédias geradas por essas teorias fizeram a ciência aceitar que as raças não tinham nada de biológico e que eram apenas um produto da sociedade. O que vemos agora é a tendência de volta à biologia, diz o antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São Paulo (USP).

Os cientistas estão confiantes que dessa vez o resultado será diferente. Estudar as diferenças humanas é perigoso porque sempre existirão pessoas que distorcerão os estudos, mas acredito que os cientistas e o público amadureceram o suficiente para seguirmos com as pesquisas, diz a antropóloga Nina Joblonski, da Academia de Ciências da Califórnia, Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, as ciências humanas avaliam como o racismo é difundido e prejudicial. Nesse ponto, o Brasil está entre os piores países do mundo. O problema é complexo, mas podemos amenizá-lo. Só que, antes, é preciso saber como tudo começou.

Como nos tornamos diferentes?
Ao contrário dos chimpanzés e demais primatas, o homem não possui cabelo por todo o corpo. A adaptação provavelmente surgiu por volta de 1,6 milhão de anos atrás para esfriar o corpo de alguns dos nossos primeiros ancestrais, que começavam a se tornar mais ativos e fazer longas caminhadas. Uma mudança levou a outra: células que produziam melanina, antes restritas a algumas partes descobertas, se espalharam por toda a epiderme. Além de tornar a pele escura, a melanina absorve os raios ultravioleta do Sol e faz com que percam energia. Os cientistas acreditavam que esse traço havia evoluído para evitar cânceres de pele, mas a teoria esbarrava no fato de que esse mal costuma surgir em idade avançada, depois que as pessoas já tiveram filhos, e portanto dificilmente alteraria a evolução. Até que, em 1991, Nina Joblonski encontrou estudos que mostravam que pessoas de pele clara expostas à forte luz solar tinham níveis muito baixos de folato.

A deficiência dessa substância em mulheres grávidas pode levar a graves problemas de coluna em seus filhos. Além disso, o folato é essencial em atividades que envolvam a proliferação rápida de células, como a produção de espermatozóides. Nos ambientes próximos à linha do Equador, a pele negra era uma boa forma de manter o nível de folato no corpo, diz a antropóloga.

Enquanto os humanos modernos estavam restritos à África, a melanina funcionava bem para todos. Eles eram um grupo bastante homogêneo, porque, por motivos desconhecidos, os primeiros humanos estiveram perto da extinção há cerca de 200 mil anos, com talvez não mais de 20 mil pessoas. Posteriormente, a descoberta de novas ferramentas e o crescimento da população tornou a África pequena demais para eles e, cerca de 100 mil anos atrás, os homens modernos chegaram à Ásia. De lá se espalharam para a Oceania, depois para a Europa e, há pelo menos 15 mil anos, à América.

Nas regiões menos ensolaradas, a pele negra começou a bloquear demais os raios ultravioleta. Esse tipo de radiação é nocivo em quase todos os aspectos, mas tem um papel essencial no organismo: iniciar a formação na pele de vitamina D, necessária para o desenvolvimento do esqueleto e a manutenção do sistema imunológico. A tendência então foi que populações que migraram para regiões menos ensolaradas desenvolvessem pele mais clara para aumentar a absorção de raios ultravioleta. Em regiões intermediárias, o truque evolutivo foi o bronzeamento uma camada temporária de melanina para proteger o folato em épocas de sol e produzir vitamina D quando ele não fosse tão forte. Ou seja, de acordo com os novos estudos, a cor da pele é apenas uma forma de regular nutrientes.

Adaptações ao clima afetam primordialmente características superficiais. A interface entre o interior e o exterior têm papel fundamental na troca de calor de dentro para fora, e vice-versa, afirma o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos pioneiros no estudo de genética de populações, em seu livro Genes, Povos e Línguas. Ao se espalhar pelo mundo, os seres humanos tiveram que lidar com todo tipo de ambiente e o principal elemento a se adaptar aos extremos de temperatura, umidade, iluminação e ventos do planeta foi a aparência. Um exemplo é o tamanho do corpo: em regiões quentes é vantajoso ser baixo como os pigmeus ou alongado como os quenianos, com a superfície do corpo grande quando comparada ao volume, o que facilita a evaporação do suor. O cabelo encarapinhado ajuda a reter o suor no couro cabeludo e a resfriá-lo. O oposto ocorre em regiões frias como a Sibéria.

O corpo e a cabeça dos mongóis, que se desenvolveram por lá, tendem a ser arredondados para guardar calor, o nariz, pequeno para não congelar, com narinas estreitas para aquecer o ar que chega aos pulmões, e os olhos, alongados e protegidos do vento por dobras de pele.

A origem de muitas características, no entanto, permanece desconhecida. Muitas delas podem ter surgido por serem consideradas belas ou simplesmente por acaso. Populações de nativos da América, por exemplo, devem ter passado por momentos em que se reduziram a algumas dezenas de indivíduos, o que eliminaria os traços menos comuns, como alguns tipos sangüíneos. Há também a influência da cultura: algumas mudanças podem não ter ocorrido porque os homens já tinham meios de se proteger do ambiente. Ainda não sabemos se a maioria dos traços foi fruto da adaptação ou da sorte, mas é provável que os estudos do genoma humano expliquem muitos deles nos próximos dez anos, diz a antropóloga Nina Joblonski.

As modificações, no entanto, não foram muito além da aparência, graças à homogeneidade da população humana em seus primórdios e ao pouco tempo que ela teve para evoluir desde então (cerca de 7 500 gerações). Os poucos traços que mudaram também não estão ligados entre si, o que permitiu que uma mesma pessoa tenha características de diferentes etnias e criou um contínuo de cores entre as populações. Entretanto, a visão é o sentido mais apurado do ser humano e o fato de essas diferenças estarem na aparência levou muitos a considerá-las profundas.

Existem raças humanas?
Em 1758, o botânico sueco Carolus Linnaeus o criador do atual sistema de classificação dos seres vivos deu à humanidade o nome científico de Homo sapiens e a dividiu em quatro subespécies: os vermelhos americanos, geniosos, despreocupados e livres; os amarelos asiáticos, severos e ambiciosos; os negros africanos, ardilosos e irrefletidos, e os brancos europeus, evidentemente, ativos, inteligentes e engenhosos. Estava aberta a discussão sobre a existência de raças humanas e o valor de cada uma. No entanto, essas características nunca foram comprovadas e a principal conseqüência desse tipo de idéia foram as câmaras de gás nazistas, o que levou os cientistas do século 20 a acreditar que todas as diferenças entre humanos estavam na cultura. A idéia de que as raças humanas não existem biologicamente foi reforçada nos anos 70, quando pesquisas analisaram as diferenças entre as proteínas de diversas populações.

Os seres humanos estavam muito longe de apresentar uma diversidade comparável à de espécies que de fato possuem raças, como elefantes ou ursos. Na verdade, a diferença genética entre dois chimpanzés de uma mesma colina na África pode ser maior que o dobro da existente entre os 6 bilhões de humanos do planeta.

Faltava apenas uma medida precisa da grande semelhança existente entre nós, e ela finalmente apareceu em dezembro do ano passado. Uma equipe de sete pesquisadores dos Estados Unidos, França e Rússia comparou 377 partes do DNA de 1 056 pessoas de 52 populações de todos os continentes. O placar final: entre 93% e 95% da diferença genética entre os humanos é encontrada nos indivíduos de um mesmo grupo e a diversidade entre as populações é responsável por 3% a 5%. Ou seja, dependendo do caso, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que com alguém de sua cidade. O estudo também mostrou que não existem genes exclusivos de uma população, nem grupos em que todos os membros tenham a mesma variação genética. A diversidade entre as populações está nas diferentes freqüências de traços que são encontrados em todo lugar, diz o biólogo Noah Rosemberg, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, um dos autores do trabalho.

O estudo, entretanto, levantou um aspecto polêmico: há, de fato, uma relação entre o grupo de origem de uma pessoa e seu genoma. Em outras palavras, a ancestralidade declarada por alguém reflete uma diferença genética, mesmo que, como dissemos há pouco, essa diversidade seja de apenas 3% a 5% da que existe entre os humanos. Existem claramente diferenças entre populações que são visíveis no genoma. Algumas pessoas podem chamar isso de raça, outras não, mas o fato é que a diversidade existe, apesar de representar uma fração bem pequena da nossa constituição genética, diz Rosemberg.
A questão já era muito discutida pelos médicos. Para alguns, mesmo que as raças não existam, a etnia de uma pessoa pode fornecer pistas que facilitem o diagnóstico de doenças. Outros acham que usar raças na medicina não só é inútil como perigoso. A polêmica ganhou força com a publicação no ano passado de uma pesquisa que afirmava que o enalapril, um remédio para problemas cardíacos crônicos, funcionava menos em negros que em brancos.

Existem de fato doenças mais comuns em algumas etnias. Um exemplo é a hemocromatose, uma desordem na metabolização de ferro, que ocorre em 7,5% dos suecos mas é quase inexistente em chineses ou indianos. Os negros americanos também sofrem mais de doenças cardiovasculares, mas o motivo ainda é desconhecido: pode ser um traço hereditário ou o resultado de mais tensões e menos acesso a serviços de saúde. Qualquer que seja a explicação, não podemos generalizar os resultados. Cada país tem uma composição genética diferente, que varia de acordo com a história e a interação entre os grupos que para lá migraram, afirma o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Mesmo que a raça seja um recurso útil para prever o risco de doenças, muitos médicos acreditam que seria melhor abandoná-la em prol de uma análise mais rigorosa da ascendência. Não se sabe ao certo se usar raças na medicina é melhor do que não usar nenhuma informação sobre ancestralidade. Nós preferimos usar classificações mais específicas, que chamamos de populações, diz Rosemberg. A única semelhança, por exemplo, entre os negros do Sri Lanka, da Nigéria e do norte da Austrália é a cor da pele. A categoria ainda teria a vantagem de lidar melhor com sociedades mais miscigenadas. Se você permitir que as pessoas declarem múltiplas ancestralidades, terá boas chances de determinar as diferenças genéticas, afirma Rosemberg.

As novas técnicas de análise genética, no entanto, abrem a possibilidade de se abandonarem de vez as classificações raciais em prol de critérios mais precisos. Nós precisamos simplesmente olhar todos os humanos como um enorme conjunto de genes e ver se conseguimos achar alguns grupos, que provavelmente não corresponderão à divisão clássica de raças, diz Nina Joblonski. O geneticista David Goldstein, da University College, em Londres, Inglaterra, estudou a resposta a remédios em seis grupos étnicos clássicos. O resultado foi melhor quando, em vez de considerar as populações, ele reagrupou os indivíduos de acordo com semelhanças genéticas. Como os seres humanos são muito parecidos, um remédio que funcione para uma população sempre encontrará pessoas em outros grupos que também podem se beneficiar dele. No final, para cada característica poderíamos ter um novo agrupamento.

Assim como a Terra pode ser descrita por muitos tipos de mapa do topológico ao econômico é possível dividir as variações genéticas de infinitas maneiras e ressaltar qualquer similaridade ou diferença desejada. Se sobrepusermos todos os mapas, cada pessoa será única.

Qualquer que seja a conclusão a que os médicos e biólogos cheguem, as raças vão continuar existindo para quem estuda as ciências humanas. Os brasileiros acreditam em raças e agem de acordo com elas. Então elas existem, afirma o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, da USP. Elas são uma categoria de exclusão e dominação que traz problemas na realidade. Mesmo que não existam biologicamente, elas criam vítimas, diz o antropólogo Kabengele Munanga, também da USP. Ou seja, ao menos na cabeça das pessoas, as raças são bem reais.
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 Fonte
.Supermundo. Disponível em<http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122787.shtml>. Acesso em:20mar. 2011

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