Vencendo na raça
Pesquisas revelam que o racismo
sempre esteve associado à dominação de um povo sobre outro, mas as diferenças
entre as raças vão pouco além das que se vê na imagem.
Poucas coisas mudaram no mundo
nos últimos 100 mil anos. Naquela época, os primeiros seres humanos modernos
surgiam na África e começavam a se espalhar por outros continentes. Eles eram
praticamente idênticos aos mais de 6 bilhões de pessoas que habitam hoje o
planeta. De lá para cá, os únicos retoques que a nossa espécie sofreu foram
pequenas adaptações aos diferentes ambientes mudanças exteriores para lidar
melhor com lugares mais frios, secos ou com ventos mais fortes. O lado triste
dessa incrível capacidade de adaptação é que as diferenças físicas foram usadas
para avaliar pessoas à primeira vista e atribuir-lhes qualidades e defeitos.
Milhões foram escravizados, mortos ou discriminados por causa da aparência
física.
Por que só agora os cientistas
começam a entender as diferenças entre os seres humanos? Tanta demora para tratar
do assunto tem um motivo: as primeiras tentativas científicas de analisar as
raças humanas levaram quase sempre à conclusão de que algumas eram mais
inteligentes e criativas ou seja, superiores às outras. O resultado foram as
tentativas de criar uma raça pura e as ideologias que levaram a genocídios. As
tragédias geradas por essas teorias fizeram a ciência aceitar que as raças não
tinham nada de biológico e que eram apenas um produto da sociedade. O que vemos
agora é a tendência de volta à biologia, diz o antropólogo João Baptista Borges
Pereira, da Universidade de São Paulo (USP).
Os cientistas estão confiantes
que dessa vez o resultado será diferente. Estudar as diferenças humanas é
perigoso porque sempre existirão pessoas que distorcerão os estudos, mas
acredito que os cientistas e o público amadureceram o suficiente para seguirmos
com as pesquisas, diz a antropóloga Nina Joblonski, da Academia de Ciências da
Califórnia, Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, as ciências
humanas avaliam como o racismo é difundido e prejudicial. Nesse ponto, o Brasil
está entre os piores países do mundo. O problema é complexo, mas podemos
amenizá-lo. Só que, antes, é preciso saber como tudo começou.
Como nos tornamos diferentes?
Ao contrário dos chimpanzés e
demais primatas, o homem não possui cabelo por todo o corpo. A adaptação
provavelmente surgiu por volta de 1,6 milhão de anos atrás para esfriar o corpo
de alguns dos nossos primeiros ancestrais, que começavam a se tornar mais
ativos e fazer longas caminhadas. Uma mudança levou a outra: células que
produziam melanina, antes restritas a algumas partes descobertas, se espalharam
por toda a epiderme. Além de tornar a pele escura, a melanina absorve os raios
ultravioleta do Sol e faz com que percam energia. Os cientistas acreditavam que
esse traço havia evoluído para evitar cânceres de pele, mas a teoria esbarrava
no fato de que esse mal costuma surgir em idade avançada, depois que as pessoas
já tiveram filhos, e portanto dificilmente alteraria a evolução. Até que, em
1991, Nina Joblonski encontrou estudos que mostravam que pessoas de pele clara
expostas à forte luz solar tinham níveis muito baixos de folato.
A deficiência dessa substância em
mulheres grávidas pode levar a graves problemas de coluna em seus filhos. Além
disso, o folato é essencial em atividades que envolvam a proliferação rápida de
células, como a produção de espermatozóides. Nos ambientes próximos à linha do
Equador, a pele negra era uma boa forma de manter o nível de folato no corpo,
diz a antropóloga.
Enquanto os humanos modernos
estavam restritos à África, a melanina funcionava bem para todos. Eles eram um
grupo bastante homogêneo, porque, por motivos desconhecidos, os primeiros
humanos estiveram perto da extinção há cerca de 200 mil anos, com talvez não mais
de 20 mil pessoas. Posteriormente, a descoberta de novas ferramentas e o
crescimento da população tornou a África pequena demais para eles e, cerca de
100 mil anos atrás, os homens modernos chegaram à Ásia. De lá se espalharam
para a Oceania, depois para a Europa e, há pelo menos 15 mil anos, à América.
Nas regiões menos ensolaradas, a
pele negra começou a bloquear demais os raios ultravioleta. Esse tipo de
radiação é nocivo em quase todos os aspectos, mas tem um papel essencial no
organismo: iniciar a formação na pele de vitamina D, necessária para o
desenvolvimento do esqueleto e a manutenção do sistema imunológico. A tendência
então foi que populações que migraram para regiões menos ensolaradas
desenvolvessem pele mais clara para aumentar a absorção de raios ultravioleta.
Em regiões intermediárias, o truque evolutivo foi o bronzeamento uma camada
temporária de melanina para proteger o folato em épocas de sol e produzir
vitamina D quando ele não fosse tão forte. Ou seja, de acordo com os novos estudos,
a cor da pele é apenas uma forma de regular nutrientes.
Adaptações ao clima afetam
primordialmente características superficiais. A interface entre o interior e o
exterior têm papel fundamental na troca de calor de dentro para fora, e
vice-versa, afirma o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos
pioneiros no estudo de genética de populações, em seu livro Genes, Povos e
Línguas. Ao se espalhar pelo mundo, os seres humanos tiveram que lidar com todo
tipo de ambiente e o principal elemento a se adaptar aos extremos de
temperatura, umidade, iluminação e ventos do planeta foi a aparência. Um
exemplo é o tamanho do corpo: em regiões quentes é vantajoso ser baixo como os
pigmeus ou alongado como os quenianos, com a superfície do corpo grande quando
comparada ao volume, o que facilita a evaporação do suor. O cabelo
encarapinhado ajuda a reter o suor no couro cabeludo e a resfriá-lo. O oposto
ocorre em regiões frias como a Sibéria.
O corpo e a cabeça dos mongóis,
que se desenvolveram por lá, tendem a ser arredondados para guardar calor, o
nariz, pequeno para não congelar, com narinas estreitas para aquecer o ar que
chega aos pulmões, e os olhos, alongados e protegidos do vento por dobras de
pele.
A origem de muitas
características, no entanto, permanece desconhecida. Muitas delas podem ter
surgido por serem consideradas belas ou simplesmente por acaso. Populações de
nativos da América, por exemplo, devem ter passado por momentos em que se
reduziram a algumas dezenas de indivíduos, o que eliminaria os traços menos
comuns, como alguns tipos sangüíneos. Há também a influência da cultura:
algumas mudanças podem não ter ocorrido porque os homens já tinham meios de se
proteger do ambiente. Ainda não sabemos se a maioria dos traços foi fruto da
adaptação ou da sorte, mas é provável que os estudos do genoma humano expliquem
muitos deles nos próximos dez anos, diz a antropóloga Nina Joblonski.
As modificações, no entanto, não
foram muito além da aparência, graças à homogeneidade da população humana em
seus primórdios e ao pouco tempo que ela teve para evoluir desde então (cerca
de 7 500 gerações). Os poucos traços que mudaram também não estão ligados entre
si, o que permitiu que uma mesma pessoa tenha características de diferentes
etnias e criou um contínuo de cores entre as populações. Entretanto, a visão é
o sentido mais apurado do ser humano e o fato de essas diferenças estarem na
aparência levou muitos a considerá-las profundas.
Existem raças humanas?
Em 1758, o botânico sueco Carolus
Linnaeus o criador do atual sistema de classificação dos seres vivos deu à
humanidade o nome científico de Homo sapiens e a dividiu em quatro subespécies:
os vermelhos americanos, geniosos, despreocupados e livres; os amarelos
asiáticos, severos e ambiciosos; os negros africanos, ardilosos e irrefletidos,
e os brancos europeus, evidentemente, ativos, inteligentes e engenhosos. Estava
aberta a discussão sobre a existência de raças humanas e o valor de cada uma.
No entanto, essas características nunca foram comprovadas e a principal
conseqüência desse tipo de idéia foram as câmaras de gás nazistas, o que levou
os cientistas do século 20 a
acreditar que todas as diferenças entre humanos estavam na cultura. A idéia de
que as raças humanas não existem biologicamente foi reforçada nos anos 70,
quando pesquisas analisaram as diferenças entre as proteínas de diversas
populações.
Os seres humanos estavam muito
longe de apresentar uma diversidade comparável à de espécies que de fato
possuem raças, como elefantes ou ursos. Na verdade, a diferença genética entre
dois chimpanzés de uma mesma colina na África pode ser maior que o dobro da
existente entre os 6 bilhões de humanos do planeta.
Faltava apenas uma medida precisa
da grande semelhança existente entre nós, e ela finalmente apareceu em dezembro
do ano passado. Uma equipe de sete pesquisadores dos Estados Unidos, França e
Rússia comparou 377 partes do DNA de 1 056 pessoas de 52 populações de todos os
continentes. O placar final: entre 93% e 95% da diferença genética entre os
humanos é encontrada nos indivíduos de um mesmo grupo e a diversidade entre as
populações é responsável por 3% a 5%. Ou seja, dependendo do caso, o genoma de
um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que com alguém
de sua cidade. O estudo também mostrou que não existem genes exclusivos de uma
população, nem grupos em que todos os membros tenham a mesma variação genética.
A diversidade entre as populações está nas diferentes freqüências de traços que
são encontrados em todo lugar, diz o biólogo Noah Rosemberg, da Universidade do
Sul da Califórnia, Estados Unidos, um dos autores do trabalho.
O estudo, entretanto, levantou um
aspecto polêmico: há, de fato, uma relação entre o grupo de origem de uma
pessoa e seu genoma. Em outras palavras, a ancestralidade declarada por alguém
reflete uma diferença genética, mesmo que, como dissemos há pouco, essa
diversidade seja de apenas 3% a 5% da que existe entre os humanos. Existem
claramente diferenças entre populações que são visíveis no genoma. Algumas
pessoas podem chamar isso de raça, outras não, mas o fato é que a diversidade
existe, apesar de representar uma fração bem pequena da nossa constituição
genética, diz Rosemberg.
A questão já era muito discutida
pelos médicos. Para alguns, mesmo que as raças não existam, a etnia de uma
pessoa pode fornecer pistas que facilitem o diagnóstico de doenças. Outros
acham que usar raças na medicina não só é inútil como perigoso. A polêmica
ganhou força com a publicação no ano passado de uma pesquisa que afirmava que o
enalapril, um remédio para problemas cardíacos crônicos, funcionava menos em
negros que em brancos.
Existem de fato doenças mais
comuns em algumas etnias. Um exemplo é a hemocromatose, uma desordem na
metabolização de ferro, que ocorre em 7,5% dos suecos mas é quase inexistente
em chineses ou indianos. Os negros americanos também sofrem mais de doenças
cardiovasculares, mas o motivo ainda é desconhecido: pode ser um traço
hereditário ou o resultado de mais tensões e menos acesso a serviços de saúde.
Qualquer que seja a explicação, não podemos generalizar os resultados. Cada
país tem uma composição genética diferente, que varia de acordo com a história
e a interação entre os grupos que para lá migraram, afirma o geneticista Sérgio
Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mesmo que a raça seja um recurso
útil para prever o risco de doenças, muitos médicos acreditam que seria melhor
abandoná-la em prol de uma análise mais rigorosa da ascendência. Não se sabe ao
certo se usar raças na medicina é melhor do que não usar nenhuma informação
sobre ancestralidade. Nós preferimos usar classificações mais específicas, que
chamamos de populações, diz Rosemberg. A única semelhança, por exemplo, entre
os negros do Sri Lanka, da Nigéria e do norte da Austrália é a cor da pele. A
categoria ainda teria a vantagem de lidar melhor com sociedades mais
miscigenadas. Se você permitir que as pessoas declarem múltiplas
ancestralidades, terá boas chances de determinar as diferenças genéticas,
afirma Rosemberg.
As novas técnicas de análise
genética, no entanto, abrem a possibilidade de se abandonarem de vez as
classificações raciais em prol de critérios mais precisos. Nós precisamos
simplesmente olhar todos os humanos como um enorme conjunto de genes e ver se
conseguimos achar alguns grupos, que provavelmente não corresponderão à divisão
clássica de raças, diz Nina Joblonski. O geneticista David Goldstein, da
University College, em Londres, Inglaterra, estudou a resposta a remédios em
seis grupos étnicos clássicos. O resultado foi melhor quando, em vez de
considerar as populações, ele reagrupou os indivíduos de acordo com semelhanças
genéticas. Como os seres humanos são muito parecidos, um remédio que funcione
para uma população sempre encontrará pessoas em outros grupos que também podem
se beneficiar dele. No final, para cada característica poderíamos ter um novo
agrupamento.
Assim como a Terra pode ser
descrita por muitos tipos de mapa do topológico ao econômico é possível dividir
as variações genéticas de infinitas maneiras e ressaltar qualquer similaridade
ou diferença desejada. Se sobrepusermos todos os mapas, cada pessoa será única.
Qualquer que seja a conclusão a
que os médicos e biólogos cheguem, as raças vão continuar existindo para quem
estuda as ciências humanas. Os brasileiros acreditam em raças e agem de acordo
com elas. Então elas existem, afirma o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães, da USP. Elas são uma categoria de exclusão e dominação que traz
problemas na realidade. Mesmo que não existam biologicamente, elas criam
vítimas, diz o antropólogo Kabengele Munanga, também da USP. Ou seja, ao menos
na cabeça das pessoas, as raças são bem reais.
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Fonte
.Supermundo. Disponível em<http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122787.shtml>.
Acesso em:20mar. 2011
Excelente texto, uso em aulas.
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